[misterioso]

Salve!

Circula pela internet, com pouquíssimos pixels e incontáveis reproduções, uma imagem que retrata o famoso José de Abreu:

A reprodução do retrato de José de Abreu, como encontra-se na rede mundial de telecomputadores. Realmente faltou a ferramenta “enhance” (vide a cena de Blade Runner – lembrando que faltam apenas dois anos para 2019 :-).

 

O retrato, tradicionalmente atribuído a José de Abreu. Esta versão me foi enviada pela Comunicação Social do 6º RCB de Alegrete, sendo existente neste regimento, chamado “Regimento José de Abreu”. Note-se que a imagem parece ter sido cortada na extremidade inferior. Ao que parece até o momento, esta é uma reprodução de um original, sobre o qual ainda procuro desvendar mais.

 

Ao que parece, foi baseado na imagem acima que, em 1937, João Faria Viana representou o Barão do Serro Largo na reconhecida obra de Mário Teixeira de Carvalho, o Nobiliário Sul-Riograndense, como vemos:

No Museu Júlio de Castilhos encontra-se ainda outro retrato – sobre este comentou Francisco de Paula Cidade, em Dois ensaios de História. A imagem tem semelhanças e diferenças em comparação às imagens anteriores.

Sobre o primeiro retrato, todas as informações ainda estou por descobrir (exceto que não encontra-se no Museu Julio  de Castilhos). Mas a imagem em questão, mesmo vista pela tela do computador e em baixa resolução, oferece várias pistas no figurino e na numismática que vestem o sujeito retratado. Este último campo de estudos ocupa-se de moedas e símbolos, e duas ciências de que derivam dela serão aqui de particular interesse: a falerística e a medalhística. (Nota: atualização em 15 de junho de 1017: uma versão com mais qualidade já está incluída neste post e no Repositório. A imagem foi gentilmente enviada pela Comunicação Social do Regimento José de abreu, na voz do Sargento Hiliunes).

– A medalhística…

Estuda medalhas, é claro. Neste caso duas delas aparecem no retrato:

“Perdoai a pouca resolução”

Estas estão claramente representadas no busto de José de Abreu que existe no 6º Batalhão de Cavalaria de Alegrete, como já postado previamente aqui:

iuhasiuashuiha

Êi-la novamente: “Busto do Barão no 6º Regimento de Cavalaria de Alegrete. Foto: Juner Vieira/ especial / cp, reproduzida da mesma notícia.” Nota: A Comunicação Social do 6º Regimento de Cavalaria Blindada, o “Regimento José de Abreu”, de Alegrete, na voz do gentilíssimo Sargento Hiliunes, teve a bondade de informar que este busto foi inaugurado em 21 de outubro de 1957, e produzido pela antiga metalúrgica Eberle.

 

 

– Em detalhe, as medalhas – Segundo o mesmo Sargento Hiliunes, não é possível, pessoalmente, identificar que medalhas são estas. Certo é que estão feitas à semelhança do retrato acima, existente no mesmo Regimento.

Supunha que o Regimento do qual José de Abreu é patrono soubesse exatamente que medalhas são estas. Mas em contato com o Regimento José de Abreu, esta ainda é uma questão em aberto. Ofereço aqui uma alternativa:

Tendo em mente que os momentos mais notáveis de José de Abreu deram-se entre os anos de 1811 e 1820, a identificação destas medalhas – mesmo sem poder ver bem – torna-se um pouco mais embasada, ainda que seja, para mim, um jogo de adivinhação.

A medalha da direita é, aparentemente, esta:

COSTA, Sérgio Paulo Muniz. “A construção da fronteira sul”, p.284. Reproduzido da obra de Jonas de Morais Correia Filho, “Símbolos Nacionais na Independência” (Rio de Janeiro, 1994).

Sabe-se que a medalha está em verde e amarelo, e uma descrição perfeitamente detalhada encontra-se aqui – “As Medalhas e Ordens Militares e Civis do Brasil:

MEDALHA DE CAMPANHA CISPLATINA – 1816-1821

Destinada a distinguir os componentes do Exército e esquadra sob o comando em chefe do Ten. Gal. Visconde de Laguna. Foi criada pelo Decreto de 31-I-1823.

Característica. A medalha tinha a forma de cruz, de ouro para os oficiais generais, de prata para os demais oficiais e de estanho ou metal branco para os praças de pré.

No anverso, o centro era de esmalte azul, e nele se achava gravado um ramo de oliveira posto sobre o Serro de Montevidéu, circundado por uma coroa circular, onde havia a inscrição MONTEVIDEO, em cima, e, um ramo de louro em baixo.

No reverso, o centro era de esmalte verde com a legenda PETRUS PRIMUS, BRASILIAE IMPERATOR, DEDIT, circundado por um ramo de louro.

A cruz era encimada por um dragão alado que representa a Casa de Bragança. O número de anos de campanha era marcado nos braços da cruz, da seguinte forma: um, era inscrito no braço superior da cruz; dois, era inscrito nos braços laterais; três, no superior e no braços laterais; quatro, nos quatro braços; cinco, nos quatro lados do anverso e no superior do reverso e seis anos nos quatro lados do anverso e nos laterais do reverso.

A medalha era usada do lado esquerdo do peito, pendente de fita verde, orlada de amarelo, com passador em metal correspondente ao da cruz, com a legenda MDCCCXXII.”

E já que estamos aqui…

A Cruz da Cisplatina, colorizada por esta, que vos escreve. Tentei, decerto em vão, não errar.

Da medalha da esquerda ainda não encontrei nenhuma imagem que pudesse corresponder. Minha melhor ideia é que seja a medalha assim descrita em Academia de História Militar Terrestre do Brasil:

“(Omitida a gravura)

Medalha das Campanhas de 1816 e 1820 contra Artigas. Foi criada por decreto [sic] de 15 de setembro de 1822, por D. Pedro I, para premiar os militares que tomaram parte das tropas ao comando do Marques de Alegrete e depois do Conde da Figueira que venceram Artigas respectivamente em Catalan em 1816, e em Taquarembó, em 1820. A medalha consiste numa Cruz de Malta maçanetada, tendo ao centro a medalha conferida ao Exército Pacificador da Banda Oriental.

Ela figura em preto e branco em O Exército e a medalhística, p.56″

Primeiro vale dizer que as batalhas condizem com o histórico do Barão do Sêrro Largo, que àquelas alturas ainda não era um oficial general, mas sim tenente-coronel, durante a batalha do Catalão, e brigadeiro, na batalha de Taquarembó (na qual o seu desempenho, aliás, valeu-lhe a promoção a marechal-de-campo graduado, em 1º de março de 1820).

Interpretando a descrição, “Cruz de Malta maçanetada, tendo ao centro a medalha conferida ao Exército Pacificador da Banda Oriental”, onde a Cruz de Malta é a  forma reproduzida abaixo, e “maçanetada” significa neste contexto”ao redor”, falta apenas imaginar inserida nela a medalha dada aos pacificadores da Banda Oriental.

Cruz de Malta, Wikimedia Commons

Mais uma vez encontrei somente a descrição, na mesma fonte anterior:

“(Omitida a gravura)

Medalha de Campanha do Exército Pacificador da Banda Oriental – 1812:

Foi criado como escudo de distinção do Exército Pacificador da Banda Oriental, por decreto [sic] de 20 de janeiro de 1815, do Príncipe Regente D. João. Era para ser usada no braço direito. As dos oficiais generais eram de ouro. As dos demais oficiais, cadetes e empregados civis eram de prata. As das praças eram de estanho. Decreto [sic] de 25 de setembro de 1822 substituiu os escudos, por medalhas e permitiu que elas fossem usadas pendentes do pescoço por uma fita amarela pelos oficiais generais. Para os demais ela era presa na farda no lado esquerdo, com uma fita amarela. Os feridos em combate recebiam a medalha perfurada, simbolizando uma cicatriz de combate. (Omitida). Ela consta em preto e branco da obra O Exército e a medalhística p. 26).”

Não há, no meu entender, nenhuma discrepância entre as descrições acima e a medalha cor de prata, emoldurada por uma cruz de malta e suspensa por fita amarela do lado esquerdo da farda, como retratado na primeira imagem deste humilde post.

Mas vamos ver ainda as demais insígnias na imagem. Para isso, vamos recorrer à

falerística.

E poderemos facilmente identificar as duas condecorações restantes no retrato, mesmo que uma delas encontre-se parcialmente excluída da reprodução.

Segundo Aurélio Porto, em seu Dicionário enciclopédico do Rio Grande do Sul, José de Abreu

“Recebeu mais a placa e cruz da ordem de São Bento de Aviz, a de cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, e a efetivação no Comando das Armas da Província, e a de marechal-de-campo em 12 de outubro de 1824.”

A insígnia de São Bento de Aviz está presente, como se afere nesta imagem, extraída da compilação de Artidório Augusto Xavier Pinheiro:

“A placa e a cruz” estão associadas ao grau de Comendador, o terceiro de 5 graus desta ordem. “Insígnia: cruz latina verde, flordelizada.” A cruz com fita é sem dúvida a condecoração usada no pescoço do retratado – vide:

Um zoom do objeto em questão no retrato de que tratamos aqui – para os que tem preguiça de rolar até lá em cima.

A insígnia de Cavaleiro da a Imperial Ordem do Cruzeiro, criada em 1º de dezembro de 1822 por Dom Pedro I, seria usada por José de Abreu – Cavaleiro era o menor dos 4 graus. Este poderia muito bem ser o adereço que se encontra logo abaixo das medalhas.

Com muito boa vontade, vemos o topo de uma ponta bifurcada, pendente de uma coroa.

Enfim, até agora, nas medalhas e condecorações, não há nenhuma contradição entre o retrato e a trajetória do Barão do Serro Largo. Falta apenas verificar agora a farda: e no processo de escrever este post descobri que há, inclusive, um ramo do conhecimento denominado

uniformologia.

Sem entrar em complexas terminologias e definições, precisamos primeiro determinar a época do retrato.

Como vimos, entre as medalhas e insígnias que estão na pintura, a mais recente será a primeira a ser tratada neste post, criada em 1º de dezembro de 1823. Nesta data o Barão do Serro Largo era já marechal-de-campo, graduado em 1820 e efetivado em 1824. Este foi o seu mais alto posto. A fim de confirmar a adequação histórica do uniforme no retrato, é ferramenta essencial a obra de Gustavo Barroso – Uniformes do Exército Brasileiro, 1730-1922.

À página 89 deste volume, está o número da figura que procuro. São de particular interesse os figurinos B e E.

Êi-los:

De todos esses uniformes, o que melhor se associa ao que se encontra no retrato é o penúltimo da esquerda para a direita, ou seja, a estampa E. Corresponde ao pequeno uniforme de um marechal-de-campo, em 1823. Aquarela de José Wasth Rodrigues, 1922.

Enhance! O “pequeno uniforme” parece equivaler ao que atualmente se chama uniforme de serviço, segundo Lagos Militar.

Nota-se, por pouco, a ponta de uma franja na dragona do ombro esquerdo. A frente é com botões dourados e sem bordados, que ficam restritos à gola.

Até aqui, sem surpresas, nada fora do esperado. Este retrato, original ou póstumo, está feito para refletir as condecorações do Barão.

Agora, sobre o retrato do Museu Julio de Castilhos – em primeiro lugar, aqui está:

 

Retrato de José de Abreu. Reprodução gentilmente cedida pelo Museu Julio de Castilhos, Porto Alegre. Autor desconhecido, assinatura não reconhecida. Crayon sobre papel, 50x39cm. Item do acervo Nº 143, recebido como doação do Quartel General do III Exército, em 1949.

Retrato de José de Abreu. Reprodução gentilmente cedida pelo Museu Julio de Castilhos, Porto Alegre. Autor desconhecido, assinatura não reconhecida. Crayon sobre papel, 50x39cm. Item do acervo Nº 143, recebido como doação do Quartel General do III Exército, em 1949. A insígnia é a da Ordem do Cruzeiro, mas o uniforme não parece o de um oficial general daquele tempo.

Em segundo, cabe dizer que as dúvidas levantadas sobre a correta atribuição na obra de Cidade (Dois ensaios de história) são de cunho muito subjetivo, tratando-se especificamente da sua aparência:

“Além disso, a fisionomia não parece ser a de um caboclo, cruza de branco com índio, conforme a mestiçagem que lhe atribuem vários dos que com ele privaram, um dos quais o aponta como sendo um dos maiores conhecedores da língua indígena.”

Infelizmente, neste aspecto, foi o autor de Dois Ensaios de História induzido ao erro pelo próprio Barão do Serro Largo, pelas suas declarações às vezes dúbias, os às vezes contraditórias, ao menos na superficialidade das aparências, sobre si mesmo. Mas a afirmação de que Abreu era de origem indígena, como ainda cabe esmiuçar em outro momento, simplesmente não procede de nenhuma fonte primária.

Por fim, sobre o retrato em questão, diz Cidade:

“Há dúvidas sobre sua autenticidade, havendo mesmo quem diga que deve ser um dos membros da família do Barão.”

Sobre a possível atribuição deste retrato a um dos familiares do Marechal, nenhum dos seus quatro filhos (eram eles: Cláudio José de Abreu; José Inácio de Abreu; Manoel José de Abreu; Cândido José de Abreu), nem seu irmão (Romão de Souza e Abreu) atingiram o mesmo reconhecimento, ou sequer reconhecimento comparável, ao deste grande vulto da história da formação da fronteira Sul do Brasil. Certamente teriam menos medalhas e condecorações, e não chegariam a usar uma farda de oficial general, como a do pai. Além disso, como declarou o próprio Cidade, os filhos de José de Abreu pretendiam afiliar-se à Ordem de Cristo, cujas insígnias eram estas:

 

Já a minha hesitação sobre a atribuição correta do retrato do Museu Julio de Castilhos tem a ver justamente com os tópicos aqui tratados: a condecoração e o uniforme. E, em se tratando de concluir qual desses retratos seria o predecessor dos demais, falta ainda descobrir mais sobre o primeiro aqui mostrado.

 

Sem mais até o momento, despeço-me aqui.

Esta, que vos escreve

helga

~Helga.

Em destaque: reprodução parcial do retrato do Barão por João Faria Viana, colorizado por esta, que vos escreve. A figura inteira está publicada neste post, em Colírio.

Principais fontes bibliográficas:

BARROSO, Gustavo. Uniformes do Exército Brasileiro, 1730-1922. Paris: Ferroud, 1922.

CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-Riograndense. Porto Alegre: Renascença: Edigal, 2011.

COSTA, Sérgio Paulo Muniz. A construção da fronteira sul. Porto Alegre: IHGRGS, 2015.

CIDADE, Francisco de Paula. Dois Ensaios de História. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1966.

PINHEIRO, Artidório Augusto Xavier. Organisação das Ordens Honoríficas do Império do Brazil. São Paulo: Jorge Seckler & C., 1884.

PORTO, Aurélio. Dicionário enciclopédico do Rio Grande do Sul, 1º Vol. Porto Alegre: Universo, 1936.

VASCONCELOS, Rodolfo Smith de & Vasconcelos, Jaime Smith de. Arquivo Nobiliárquico Brasileiro. Lausana: La Concorde, 1918.

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