Saiba: todo mundo foi neném
Einstein, Freud e Platão também
∼ Arnaldo Antunes, “Saiba”
Salve!
Perdi a conta de quantas vezes encontrei datas e locais diferentes apontados como os do nascimento de José de Abreu, Barão do Serro Largo – sem nunca, entretanto, apontarem as evidências das quais teriam sido extraídas as informações. Este post é, portanto, um convite a passear pelas fontes documentais que nos permitem constatar que, no padrão atual
∼ São Carlos (Maldonado, Uruguai),
1770 ∼
são a data e local de nascimento mais corretos do Barão do Serro Largo.
“Segundo quem?”
– Segundo ele mesmo.
Vamos também compreender melhor a fonte de alguns erros que se repetem e se difundem sem cuidados, de reprodução em reprodução. Aviso já que
∼ A grande dificuldade ∼
em determinar precisamente a data e local de nascimento do Barão é a falta dos registros de batismo em ambos os possíveis locais de nascimento no período em que ele nasceu: Rio Grande, em que faltam os livros no período da ocupação espanhola, entre 1763 e 1776; e São Carlos, em que faltam os registros dos primeiros anos de fundação, entre 1763 e 1770.
No entanto, apesar de muitas obras publicadas com erros, crédito deve ser dado, em particular a duas obras que chegam o mais próximo possível de encerrar a questão ao redor da qual gira este texto. São elas o esboço biográfico do Barão do Rio Branco,[1] por apontar uma fonte essencial de informação; e, não menos importante, pela diligência na crítica e obtenção de informações valiosas, o ensaio histórico do general Francisco de Paula Cidade.[2] Outras fontes que incluirei aqui confirmam o que se sabe a partir das informações contidas nestes dois volumes.
∼ Vamos aos fatos… ∼
A primeira evidência, a que nos permite fixar 1770 como data autodeclarada de nascimento do Marechal José de Abreu, com muita clareza, é a matrícula no Regimento de Infantaria e Artilharia de Rio Grande, em 28 de dezembro 1784:
Nota que recebi: José de Abreu, filho de João de Abreu, de idade 14 anos. Recebeu 5$300, como o de f. 76, em 28 de dezembro de 1784. Vence de 28 de dezembro de 1784 que se ofereceu voluntariamente para o Real Serviço.[3]
Sobre a naturalidade de Abreu, Francisco de Paula Cidade aponta o registro de batismo de José Inácio da Silva Abreu, filho do Marechal, como a evidência que encerra a questão sobre o local de nascimento (Maldonado).[2] Anterior a esse registro, há o casamento do então soldado José de Abreu, em 1794.[4] Das informações contidas neste registro derivam, evidentemente, os dados copiados nos batismos dos filhos do casal. Eis o documento, encontrado há alguns anos por esta, que vos escreve:
Quase 32 anos depois, já Marechal de Campo e Barão do Serro Largo, José de Abreu reafirma ter chegado aos domínios portugueses na adolescência:[5]
Cabe notar sobre as palavras de Abreu que no mesmo comunicado, diz ele ter vindo ao Rio Grande do Sul aos 13 anos, e chama o mesmo lugar de “Provincia de S. Pedro de Rio Grande seu Paiz natal”. Isso quer dizer que, se em alguma ocasião declarou algo como “ser de Rio Grande”, não quis dizê-lo ao pé da letra, no sentido de naturalidade, mas sim no sentido de identidade e pertencimento, ou seja, que cresceu em Rio Grande. Aliás, note-se que um dos primeiros nomes de São Carlos de Maldonado, além de Maldonado Chico, foi justamente Povo Novo (Pueblo Nuevo de San Carlos), assim como chamava-se Povo Novo o núcleo adjacente a Rio Grande. Quanto à data, suponho que alguns autores interpretaram 1771 como a data de nascimento de José de Abreu em função desta declaração combinada à data de alistamento no exército (1784), incorrendo, assim, em erro.
Finalmente, se, por um lado, o que declara a família do marechal na ocasião do seu sepultamento, em 1828, reafirma que nasceu em Maldonado, por outro, pode nos fazer imaginar que ele poderia ser de fato mais velho do que imaginava. Eis o assento de sepultamento dos ossos do Barão,[6] no qual diz-se que ele faleceu aos 70 anos em 1827 – e portanto teria nascido, segundo esse documento, por volta de 1757.
∼ faço aqui um parêntesis:
∼ Pode parecer estranho
Que uma pessoa não soubesse a própria idade. Mas mesmo hoje ainda há muitos, em localidades mais retiradas, que podem muito bem perder a conta de quantos anos têm. Nos registros eclesiásticos mais antigos, era comum anotar uma idade aproximada. E mesmo em vida, a noção de tempo e o controle rígido dos anos não transparece ter sido de suma importância há séculos atrás. Vejamos, por exemplo, a situação do filho primeiro do Barão do Serro Largo, o Tenente-Coronel Cláudio José de Abreu. Inventariante do Barão e da Baronesa, sua esposa, em 1849, declarou contar 49 anos. A história julgou por muito tempo que houvesse nascido em 1800, afinal – foi isso que ele mesmo declarou. Há alguns anos, porém, tive o prazer de encontrar o seu registro de batismo, ocorrido em 1795. Ele, em meados do oitocentos, errou por cinco anos. Mas o que são cinco anos? É tanta diferença assim, para quem não se importa em controlar quantos anos se passaram?
O tempo é muito relativo.
Seria mesmo tão estranho que alguém, ao final de século XVIII, ou primeiras décadas do século XIX, não soubesse exatamente quantos anos realmente tinha? Não me parece.
∼ fim deste parêntesis
Além das evidências apontadas nessas obras, nos auxilia também a definir o contexto do nascimento do Barão a compreensão das circunstâncias da família Abreu. Realmente, como comenta o general Cidade, a época do nascimento de José de Abreu, Rio Grande e por extensão Povo Novo encontravam-se sob o domínio espanhol. Em 1765, João de Abreu – pai do marechal – está na lista de deportados a São Carlos de Maldonado, atual Uruguai. Mais três autores elucidam o histórico da família Abreu no território espanhol: Brenda Pagola[7] e Carlos Seijo[8].
∼ A família Abreu ∼
Pois bem. O nascimento de José de Abreu, ainda que tenha ocorrido anos depois, remonta à tomada de Rio Grande por Cevallos, em 1763, e alguns poucos anos interiores. O pai de José de Abreu era chamado João de Abreu, de Guimarães, como se lê em todos os registros da família de José de Abreu. Este homem português, João de Abreu, casou-se uma vez, em Rio Grande, em 1757. Vejamos:
Em 1760, nasce o primeiro filho do casal, chamado Vicente:
Alguns anos se passaram até 1763, o ano da invasão espanhola em Rio Grande. Com o abandono da vila por parte das autoridades, antes que houvesse real confronto de armas, a invasão espanhola ocorreu sem resistência, e de fato, é referida por alguns como “a entrega” de Rio Grande. Sem planejamento, organização ou tempo suficientes para uma retirada da população, esta dispersou-se sem um destino único. Várias famílias atravessaram a Lagoa dos Patos e instalaram-se em São José do Norte e Estreito, muitas transferiram-se para Viamão, Triunfo, Taquari, etc. E muitas, sem nenhuma embarcação com que contar, simplesmente recuaram até Povo Novo – antigamente chamado Torotama.
Neste bizarro armistício, não houve um confronto, mas sim um convite de Pedro de Cevallos – o de fundar um novo núcleo populacional, em território espanhol. Assim, várias famílias decidiram-se por recomeçar a vida em São Carlos de Maldonado, a partir de 1763; e, para João de Abreu, este recomeço iniciou-se em 16 de março de 1765, no dia da partida em uma viagem que, no lombo de muares, e atravessando um rígido inverno, durou até setembro do mesmo ano. Carlos Seijo (Carolinos Ilustres) lista com detalhes os povoadores imigrados em 1763 e 65:
Ali está o nome de João de Abreu, que, assim como João Teixeira e Feliciano José, deixou a esposa à sua espera em Rio Grande por enferma.
Perguntou-se Francisco de Paula Cidade, sobre a mãe do Marechal José de Abreu:
“Resta a dúvida materna: Essa Ana Maria seria a esposa de João de Abreu que não o acompanhou por doente? Teria ele enviuvado e então casado novamente, nascendo-lhe desta união o futuro Barão do Serro Largo e um irmão deste, que figura na documentação da época, porque também foi militar? “
Ana Bernarda juntou-se a João de Abreu em 1766, ano no qual, segundo o trabalho de Brenda Pagola, o casal apadrinha uma criança na população vizinha (São Fernando de Maldonado).[7]
Por volta deste ano deve ter nascido Cláudia Petrona de Abreu, que ao que tudo indica, é a primeira filha do casal em Maldonado, tendo casado-se em 1780 em Rio Grande, portanto, por volta da tenra idade de 14 anos, aproximadamente:
Com os livros de batismos de São Carlos de Maldonado disponíveis a partir de 1771, assim surge a documentação da prole do casal:
-
“Maria Abreo de Sosa, N. 1771 (L.1B.fl.4), San Carlos.”[7][8] Segundo o familysearch, a data exata de batismo é 20 de maio de 1771;
-
“Joaquín Abreo de Sosa, N 1772 (L.1B.f.16), San Carlos.”[7][8] Segundo o familysearch, nasceu em 23 de março de 1772 e foi batizado aos 29 dias do mesmo mês e ano. “Falleció, según reza la partida de defunción en 1786, “repentinamente ahogado” (L.1D.fl.64), San Carlos, a los 14 años.”[7]
-
“Francisco Manuel Casimiro Abreo de Sosa, N. 1774 (L.1B.fl.41v), San Carlos.”[7][8] Segundo o familysearch, nasceu em 4 de novembro de 1774 e foi batizado no dia seguinte. Diz Carlos Seijo que, segundo Tomas de Razón, Este Francisco de Abreu chegou a alferes, servindo na cavalaria de Maldonado.[8]
-
“Ramón Abreo de Sosa, N. 1777 (L.1B.fl.66v), San Carlos. Fueran sus padrinos Dn. Miguel Urrutia Capitán y Comandante de la Villa y Da. Vicencia Espíndola.”[7][8] Segundo o familysearch, nasceu em 27 de junho de 1777 e foi batizado no dia seguinte. (Nota: Este é Ramão de Souza Abreu, o irmão de José de Abreu a que se referiu Francisco de Paula Cidade).[2] Aí está ele, no regimento de Entre-Rios, distrito sob o comando de José de Abreu desde 1813[2] (e também aí está um dos filhos do barão, Cândido José de Abreu).
Segundo Pagola, João de Abreu roga voltar aos domínios portugueses, sem a família – esta nota não contém data.[7] Possivelmente pretendia assegurar os termos de seu retorno, ou talvez entrar em acordo o casamento de Cláudia Petrona antes de retornar com a família a Rio Grande.
Se paira a dúvida se a família Abreu já havia retornado definitivamente em 1780, certamente em 1782 ela ali já estva em caráter definitivo, como se vê pelo batismo de Manoel, em onze de agosto daquele ano:
Infelizmente, apenas 6 anos após o nascimento deste último filho, acha-se o falecimento de Ana Bernarda:
Seguida de João de Abreu, menos de dois anos depois:
Assim, Ana Bernarda, da ilha Terceira, a quem o Marechal chamou Ana Maria, de Rio Grande, foi a única esposa de João de Abreu. (Mais detalhes, em um próximo post).
Retomando, os filhos do casal foram:
- Vicente, 1760, Rio Grande
- Cláudia Petrona Abreu, ca. 1766, Maldonado
- José de Abreu, 1770,[3] Maldonado[4]
- Maria, 1771, Maldonado
- Joaquim, 1772, Maldonado
- Francisco Manuel Casemiro, 1774, Maldonado
- Ramão, 1777, Maldonado
- Manuel, 1782, Rio Grande
A sucessão de nascimentos a partir de 1771, combinada com o alistamento de José de Abreu no exército em 1784 nos dá a certeza de que José de Abreu nasceu até, no máximo, 1770, como ele mesmo declarou. Neste período a família encontrava-se em caráter definitivo em São Carlos de Maldonado, enquanto Rio Grande achava-se ocupada pelos espanhóis.
∼ Quanto a outras fontes ∼
Exceto uma obra, todas as outras que encontrei sobre o Barão do Serro Largo referem-se a 1770 ou, mais comumente 1771, ou alguns anos a mais, ou ainda, mais vagamente, “último tritênio do século XVIII”, o que é uma gama bastante ampla.
Esta uma obra, que aponta uma data anterior a 1770 é a de Mucio Teixeira – “Os Gaúchos“, que afirma:
“O General José de Abreu, bravo Barão do Serro Largo, nasceu no município de Pelotas a 7 de julho de 1765 e faleceu em campo de batalha a 20 de fevereiro de 1827.”[9]
O “município de Pelotas” ainda não existia. Povo Novo, sim, descrito por alguns autores como “um lugarejo de Pelotas”.
Aqui faço um adendo, posterior a uma nova informação encontrada, neste artigo de Aurélio Porto – Origens de heróis riograndenses II : Marechal José de Abreu – publicado na Federação, em 1933:
Aurélio Porto diz ter pesquisado nos arquivos de Pelotas nos atos de batismo entre 1758 e 1759, presumivelmente induzido a calcular esta data de nascimento a partir do auto de sepultamento de Abreu (vide: Os ossos do Barão). Segundo esta apresentação sobre o Instituto Histórico e Geográfico de Pelotas, os registros paroquiais existem a partir de 1812. Mas se Aurélio Porto, que foi um importante historiador do seu tempo, diz que esses documentos existiam, embora em maus estado, até os anos 30, nada impediria que Múcio Teixeira tivesse acesso a esses papéis antes de 1920, ano da publicação de sua obra Os Gaúchos.
Em contato com o IHGP e a Arquidiocese de Pelotas sobre a remota possibilidade de sobrevivência desses documentos – ou se realmente existiram, e neste caso até quando – no momento aguardo resposta.
Se esta data verdadeira fosse, João de Abreu teria deixado a esposa, grávida de mais ou menos cinco meses, para instalar-se em São Carlos. Seria possível que as mulheres descritas como “enfermas” estivessem na verdade procurando poupar-se do extenuante e incerto traslado a Maldonado, que durou até setembro do mesmo ano? Poderia o Barão do Serro Largo, ter sido a vida toda 5 anos mais velho do que ele mesmo supunha – como parece ter feito, aliás, o primeiro filho, Cláudio José de Abreu, em meados do século XIX, quando foi inventariante do Barão e esposa?
É curioso. E não poderia ser mais poético, se o Marechal que tanto lutou contra Artigas e pela anexação da Província Cisplatina tivesse nascido justamente em meio a um estranho processo de transplante populacional, em circunstâncias excepcionais, que chegou a dividir e reunir a família em que nasceu, nos extremos de dois mundos em conflito. Porém – e este é um grande e decisivo porém – o autor Mucio Teixeira não indica nenhuma fonte com a qual poderia embasar esta preciosa informação. Pessoalmente, até agora não encontrei nenhum registro de batismo da família de João de Abreu neste período, em nenhuma localidade próxima a Rio Grande (em particular, Estreito), e tampouco em algum outro lugar do Rio Grande do Sul. Resta, por fim, advertir que outros erros aleatórios foram já encontrados em dados biográficos de outros vultos históricos nesta mesma obra, deste mesmo autor.
Com minúcia desta, que vos escreve