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José de Abreu (viii) : O brasão de armas

Salve!

Eis mais um post sobre o Barão do Serro Largo. Mas agora, nada muito pesado: vamos falar de amenidades. Especificamente, vamos falar sobre o brasão de José de Abreu.

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Digo amenidades, tendo em mente que este deveria ser um post simples, envolvendo pouca celeuma. Mas quase tudo que se refere ao Marechal Abreu vem imbuído de uma “História da história”, parafraseando o já mencionado múltiplas vezes, general Francisco de Paula Cidade.

Explico: a primeira menção que encontrei sobre este brasão vem do Nobiliário Sul Rio Grandense, de Mário Teixeira de Carvalho, publicado em 1937.[1] Não vem especificada a data da carta de brasão de armas, apenas menciona-se que

“Foram-lhe concedidas as armas dos Abreus: Em campo de vermelho cinco cotos de águia de ouro, postos em aspa. Por diferença, uma brica de ouro com um trifólio de sua cor. Timbre: o coto das armas. Elmo de prata aberto e guarnecido de ouro. Paquife do metal e cores das armas.”

… tudo isso após mencionar o título de barão, recebido em 12 de outubro de 1825. Das fontes apontadas no nobiliário, à página 299, duas poderiam conter a informação original, e são elas:

 

1) O Dicionário Enciclopédico do Rio Grande do Sul – 1º fascículo, Vol. 1, de Aurélio Porto, publicada no ano anterior, em julho de 1936.[2] Esta é uma edição relativamente rara, a qual eu adoraria ter em mãos, contendo páginas dedicadas não só a José de Abreu, mas também ao filho primogênito Cláudio José de Abreu, que é também meu ancestral direto. Por muita sorte, uma página deste volume encontra-se fotografada e legível, publicada por um vendedor que oferece este fascículo em bom estado, embora incompleto. Na página 34, encontra-se estampado o escudo que procuramos.
Êi-lo:

O brasão, ilustrado no volume acima citado. Não foi ainda possível saber se o mesmo volume traz também a descrição do brasão, e se faz menção à carta de brasão de armas. A visibilidade não é das melhores, mas dentro do campo do escudo, vejo apenas os cotos de águia (e talvez, uma brica)

2) Os artigos sobre o Marechal Abreu publicados no Jornal do Comércio, em 1934, escritos por Egon Prates.[3][4] Ali não se encontra menção sobre o brasão. A propósito, Egon Prates – cujo nome por extenso era João Egon d’Abreu Prates da Cunha Pinto – era neto de Cláudio José de Abreu e sua esposa Réa-Silvia Gomes de Abreu, pertencendo ao ramo dos Abreu Prates (assim como uma bisavó desta, que vos escreve). Fez um trabalho minucioso e bem embasado, embora não completamente isento de enganos, sobre o Barão do Serro Largo, que foi seu bisavô. É surpreendente que Egon Prates Pinto não conhecesse o brasão do seu, do nosso avoengo, pois tinha enorme gosto pela heráldica, e até 1936, segundo Francisco de Paula Cidade, era detentor da carta de nobreza do barão,[5] e portanto encarregado da salvaguarda deste documento, que já naquela época fora emitido havia mais de um século. Egon Prates  Pinto era tão conhecedor da heráldica que publicou, em suplementos da antiga Revista da Semana, um conjunto de brasões iluminados (incluindo biografias dos portadores e as datas das cartas de brasão de armas), e o conjunto desta obra chamou-se o Armorial Brasileiro (Brasil Colônia).

 

Voltando ao Nobiliário Sul-Riograndense, este traz a seguinte representação do brasão:

Ilustração do brasão contida no Nobiliário Sul Rio Grandense. O brasão correspondente seria: de vermelho, cinco cotos de águia de ouro postos em aspa. A brica de ouro com trifólio foi omitida, incorrendo em erro na representação.

 

A representação acima não corresponde à descrição do brasão contida no mesmo livro. Walter Spalding, em Os Construtores do Rio Grande do Sul, Vol.II,[6] parece ter sido o primeiro a publicar nota sobre essa incoerência, notando a falta da diferença na representação do brasão.

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Para os que gostam da coisa toda bem tecnicalizada, como eu…

A brasonaria tem todo um vocabulário próprio, sendo que o brasão propriamente dito é a “fórmula”, a descrição da imagem do escudo, e à sua ilustração heráldica também pode-se chamar iluminura. Assim, a frase “Em campo de vermelho cinco cotos de águia de ouro, postos em aspa. Por diferença, uma brica de ouro com um trifólio de sua cor.” é o brasão, significando:

Em campo de vermelho : sobre um fundo vermelho
cinco cotos de águia : cinco asas de águia
de ouro : de cor dourada
postos em aspas : dispostas formando um X.

 

Até aqui, este é o brasão original do Abreu chefe, a quem ele primeiro foi concedido.

 

O escudo de armas de Abreu (chefe) é muito antigo e encontra-se representado em vários livros. Mas nenhum deles me parece mais lindamente iluminado que o Livro da Perfeiçam das Armas, de Antonio Godinho, cerca de 1530 (vide imagem 34). Este NÃO pertence a José de Abreu. Como já foi explicado em outro post deste mesmo blog – brasões não pertencem a sobrenomes, e sim a linhagens.

 

E a brica com trifólio? A brica é justamente a diferença do brasão de José de Abreu, que o torna unicamente seu, é um elemento heráldico que pode ser descrito como um quarto do cantão chefe direito, localizado no canto superior esquerdo do escudo. O cantão tem um nono da área do escudo, medindo um terço da largura e da altura. Trocando em miúdos, a brica é um retângulo medindo cerca de um sexto da largura e altura totais do escudo, localizada no canto superior esquerdo do campo do brasão (desconsiderando aqui a lateralidade invertida da heráldica, a fim de descomplicar este post). No próprio Armorial Brasileiro, já referido, encontram-se exemplos deste elemento:

 

O brasão de Félix Pereira da Piedade em O Armorial Brasileiro, de Egon Prates Pinto. Iluminura de Luiz Gomes Loureiro. Da extinta Revista da Semana, Hemeroteca Digital Brasileira. A brica com o trifólio foram destacados por esta, que vos escreve.

 

Já o trifólio é uma carga heráldica (uma figura) abstrata, são três folhas unidas ao centro, em geral apontando para cima, e o termo “de sua cor” quer dizer da cor que seria encontrada ao natural, ou seja, verde.

 

O trifólio ilustrado em Dibujo Heraldico, um blog ultra informativo e didático – autoria e desenho do heraldista Xavier Garcia.

 

Os elementos descritos a partir do timbre, incluindo elmo e paquife, são ornamentos heráldicos, e sua representação não é obrigatória. Indispensáveis para a representação correta do brasão são apenas os elementos que estão dentro do campo, onde sempre estão as chamadas “diferenças” ou brisuras, que são uma tentativa de individualização do brasão, especialmente entre portadores de brasões que pertencem a um mesmo ramo familiar.

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Sobre a prática de incluir a brica em brasões concendidos no Brasil, recomendo a leitura deste post, no blog Arte Heráldica, de Eduardo Henriques d’Castro:

 

“A casa deste “desrespeito”, pelo menos no Brasil, nos é elucidada pelo Professor Baroni Santos (6), alegando que  era costume dos reis de armas do Cartório de Nobreza e Fidalguia fazer a elaboração de brasões conforme a homonímia sem verificar se a pessoa que receberia as armas em questão era ou não pertencendo à família armigerada, sendo tomado o cuidado de acrescentar-se uma diferença para não incorrer na usurpação.”

 

LEITURA RECOMENDADA : BRICAS E DIFERENÇAS

Este parecer faz o mais perfeito sentido, considerando-se que Abreu era o único sobrenome usado pelo marechal, e que a comprovação de ter direito ao uso do brasão dos Abreu por descendência seria muito improvável – vide este post.

Ainda em Arte Heráldica, outro post esclarece sobre as condições de hereditariedade de um brasão:

“Os títulos e brasões ad personam são aqueles que pertenciam à cargos administrativos do império e seus títulos de nobreza que não eram “de jure e  herdade”, por exemplo, os títulos comprados da nobreza togada do Brasil ou a nobreza adquirida através de postos de milícia portugueses e brasileiros, estes não podiam ser passados aos descendentes. Assim, só eram possuidores de brasões e títulos hereditários as famílias nobres do que hoje se considera como nobreza histórica ou constituíram regime de morgado.”

 

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Restam, assim, duas questões:

1) Onde está a carta de brasão de armas de José de Abreu? Se algum leitor hipotético tem acesso ao Dicionário Enciclopédico do Rio Grande do Sul, ou fonte ainda melhor, por favor e obrigada, mande notícia. Seria de se esperar que alguma fonte secundária pudesse apontar a fonte original do brasão. A busca por esta informação é particularmente intrigante, dada a triste história de Possidônio Carneiro da Fonseca Costa, o primeiro Rei de Armas do Brasil.

 

2) Como seria a iluminura correta do brasão do Marechal José de Abreu, incluindo a diferença da brica com trifólio? Eis aqui mais um, ou mais três oferecimentos desta, que vos escreve:

 

Brasão de José de Abreu: escudo raso. (De vermelho, cinco cotos de águia de ouro postos em aspa. Por diferença, uma brica ouro com um trifólio de sua cor). A brica com trifólio está no canto superior esquerdo (em heráldica, dito cantão chefe direito). Uma ilustração desta, que vos escreve, com inkscape.

 

Brasão de José de Abreu: Realização heráldica completa, com ornamentos: elmo, paquife e timbre. Mais uma ilustração desta, que vos escreve, com inkscape.

 

O brasão de José de Abreu : realização heráldica mais-que-completa, incorporada a coroa de barão e as insígnias de Comendador da Ordem de Avis e Cavaleiro da Ordem do Cruzeiro. Ainda mais uma ilustração desta, que vos escreve, com inkscape.

A confecção destas “iluminuras” não seria possível, se não pelo trabalho dos heraldistas que listo a seguir, cujos trabalhos encontram-se na Wikimedia Commons, podendo incluir elementos que foram usados ou adaptados de:

 

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Feita mais esta retificação sobre o Barão do Serro Largo, aqui despede-se por ora esta, que vos escreve

helga

~Helga.

 



Fontes
[1] CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário Sul Riograndense (1937), 2ª ed. Porto Alegre: Renascença : Edigal, 2011.
[2] PORTO, Aurélio.Dicionário Enciclopédico do Rio Grande do Sul – 1º fascículo, Vol. 1. Porto Alegre: Minuano, 1936.
[3] PINTO, João Egon de Abreu Prates da Cunha. O Marechal de Campo José de Abreu : Barão de Serro Largo : Notas extraídas do trabalho em preparo “Os Esquecidos da História”, I. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio. 27 de maio de 1934, p. 6.
[4] PINTO, João Egon de Abreu Prates da Cunha. O Marechal de Campo José de Abreu : Barão de Serro Largo : Notas extraídas do trabalho em preparo “Os Esquecidos da História”, II. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio. 10 de junho de 1934, p. 8.
[5] CIDADE, Francisco de Paula. Dois Ensaios de História. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1966.
[6] SPALDING, Walter. Construtores do Rio Grande, II Volume. Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1969.

Heráldica contemporânea

Salve!

Mais dia menos dia, quem curte Genealogia acaba se deparando com a Heráldica.

“Indiscutivelmente, a Heráldica está viva e de boa saúde. Basta estarmos atentos ao que nos rodeia: existe Heráldica por toda a parte.” ~ Luís Belard da Fonseca, Heráldica Portuguesa

A Heráldica, ciência e arte de estudo e representação de brasões, é muitas vezes auxiliar à Genealogia. Isso porquê, nas suas origens, os brasões eram atribuídos não a todos os portadores de um sobrenome, mas sim a um homem e seus descendentes diretos, ou seja, a uma linhagem específica de uma família.

 

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Memoráveis e inconfundíveis, mesmo a longas distâncias: escudos heráldicos bem compostos preservam as características que os definem, mesmo em apresentações mais minimalistas. Painted Clans, de Brendan McCarey.

A Heráldica obedece a um conjunto de princípios e regras cujo objetivo é proporcionar certas qualidades estéticas. Originalmente utilizados na Idade média, para identificar aliados e oponentes em campo de batalha, os escudos buscavam a legibilidade à longa distância; um aspecto inconfundível e único; e principalmente, a clareza e simplicidade do desenho, obtidos através de um sistema próprio de organização geométrica, cromática e simbólica.

 

Tradicionalmente, os brasões eram honrarias pessoais concedidas pela coroa em reconhecimento a algum evento marcante. Eram cabíveis aos descendentes do cavalheiro que primeiro o obteve, passados de geração em geração de pais para filhos, pois – Como a História é Sexista – as mulheres, a rigor, não passam seus brasões a seus descendentes. No Brasil, os brasões familiares foram designados durante a monarquia, e eram registrados no extinto Cartório de Nobreza e Fidalguia. A queda das monarquias, em 1889 no Brasil, e 1910 em Portugal, levou consigo o papel da heráldica como símbolo nobiliárquico.

Mas nem por isso deixou de existir a iconografia da heráldica e o fascínio com a brasonaria. Com o passar dos tempos, o brasão passou a ser um símbolo autoatribuído, e pode ser um símbolo pessoal, familiar, cívico, político, corporativo, esportivo, eclesiástico, militar, enfim: um símbolo para o que quer que seja. O brasão é simultanemente símbolo e lembrança, e portanto, é relíquia.

Além disso, a heráldica clássica repercute até hoje como fonte de inspiração recorrente para o design logotípico, como nos lembram algumas célebres escuderias. Para mostrar outras possibilidades atuais de aplicação da heráldica, seguem alguns exemplos modernos e releituras de brasões, em estilos evidentemente derivados dela:

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Brasões para as peças teatrais da temporada 2010 do Shakespeare’s Globe Theatre, Londres. Alguns ostentando cargas da heráldica clássica, outros incorporando desenhos não tradicionais. Vale conferir o trabalho: Shakespeare’s Kings and Rogues, Adam Hayes – via Creative & Live

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Brasões podem representar qualquer tipo de evento, de cruzadas a torneios de badminton. Um brasão contemporâneo pode incorporar elementos da vida moderna, como, por exemplo, um par de raquetes e uma peteca. Este símbolo não segue todas as regras da heráldica, mas é muito influenciado pela tradição dos escudos, apresentando simetria, proporções e adornos tradicionais. Um trabalho de Happy Menocal.

 

Na galeria acima, está o brasão em estilo heráldico tradicional repaginado com estilo geométrico, ênfase na silhueta, e abandono dos esmaltes heráldicos em favor da simplicidade monocromática. Conceito de identidade visual para a Hungria. Um trabalho de Miklós Kiss.

E para encerrar, deixo aqui o brasão de Zurique –

mais clássico, impossível:

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…e mais atual, também é difícil.

Att,

helga~Helga.